Por Raphael Caldas, CEO e Founder da Inteligov, autor de “Regulamentação da Inteligência Artificial no Brasil: a quem deve ser endereçada?”.
Quando falamos sobre Inteligência Artificial (IA) somos, quase sempre, seduzidos pela magnitude que a tecnologia é capaz de alcançar. Com o avanço tecnológico irrefreável, no entanto, o rol de discussões é ampliado e passa do simples fascínio com a possibilidade de atribuir à máquina o potencial humano para um debate intricado, embora essencial: a regulamentação.
Desde que ganhou força, a inteligência artificial e a sua utilização têm sido pauta ao redor do mundo. Em 2019, a União Europeia divulgou um guia com recomendações, políticas, investimentos, legalidade, entre outros temas acerca da IA, que serviu de base para a construção de um projeto rigoroso, anunciado em abril de 2020, com regras para o uso, incluindo a proibição de grande parte de mecanismos voltados à vigilância. Organizações que violarem as normas poderão ser multadas em até 6% de seu faturamento global. O projeto abarca uma visão geral sobre a IA e veta o uso de instrumentos considerados de alto risco, como o reconhecimento facial em espaços públicos, com possíveis isenções apenas para casos que impactem a segurança nacional.
Líder na implementação desse tipo de tecnologia, a China também já avançou no processo de regulamentar a utilização de IA. O país publicou um documento, desenvolvido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, com princípios de governança para a geração de inteligência artificial. Ainda em 2019, a Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE) lançou um guideline com diretrizes que devem ser seguidas para explorar essa modalidade da tecnologia. As big techs também têm investido para desenvolver seus próprios centros de pesquisa sobre o tema. O Google, inclusive, por meio do CEO da companhia, Sundar Pichai, se posicionou a favor da regulamentação em 2020, alegando que a legislação deve acompanhar o avanço tecnológico e as empresas precisam se comprometer com a questão.
O que esses posicionamentos revelam é que, independentemente do progresso quanto à instituição de uma regulamentação, o mundo parece trilhar o mesmo caminho quando se trata de debater as implicações que os recursos de inteligência artificial podem trazer para toda a sociedade. O que nos leva a questionar a posição do Brasil frente ao que parece ser um esforço global.
Por aqui, é importante salientar que os primeiros passos já foram dados – o que nos coloca em uma perspectiva semelhante ao que vem sendo realizado em escala mundial. Instituída neste ano pela Portaria MCTI nº 4.617, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), a Estratégia Brasileira de inteligência artificial surge para nortear as ações do governo federal quanto ao estímulo à pesquisa, inovação e soluções em IA. O documento traz eixos transversais (legislação, regulação, uso ético, governança e aspectos internacionais) e verticais (educação, força de trabalho e capacitação, empreendedorismo, aplicação no Poder Público e segurança pública).
Mas, para além da iniciativa do MCTI, o Poder Legislativo, nos âmbitos federal e estadual, também tem se movimentado pela regulamentação da IA. O Projeto de Lei (PL) 5051/2019, do senador Styvenson Valentim (PODE/RN), estabelece os princípios para o uso da inteligência artificial no Brasil. Do mesmo autor, o PL 5691/2019 institui a Política Nacional de Inteligência Artificial. As duas matérias estão na Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT) do Senado Federal, aguardando parecer do senador Rogério Carvalho (PT/SE). No mesmo sentido, ainda no Senado, em março deste ano, o senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB/PB), apresentou o PL 872/2021, que dispõe sobre os marcos éticos e as diretrizes que fundamentam o desenvolvimento e o uso da inteligência artificial no país. A proposta, contudo, ainda está sem andamento.
Já na Câmara dos Deputados, duas matérias foram apresentadas no último ano. Os PLs 21/2020 e 240/2020, dos deputados Eduardo Bismarck (PDT/CE) e Léo Moraes (PODE/RO), abordam os princípios da inteligência artificial e a regulação do uso da tecnologia no país, respectivamente. As duas proposições tramitam, atualmente, em conjunto e estão aguardando parecer da relatora, deputada Luísa Canziani (PTB/PR), na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI).
De acordo com a Inteligov, plataforma de inteligência de dados governamentais, na esfera estadual, dois estados saíram na frente. Em Minas Gerais, foi identificado o PL 1524/2020, de autoria do deputado Alencar Da Silveira Jr. (PDT), que dispõe sobre os princípios para a aplicação da inteligência artificial no Estado. Na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, está em tramitação o PL 3409/2020, da deputada Enfermeira Rejane (PCdoB/RJ), que se refere à regulamentação de softwares de IA na administração pública.
Há trabalho sendo feito em relação à regulamentação no Brasil e estamos acompanhando o ritmo mundial. Contudo, ainda que o debate seja absolutamente necessário, é preciso, antes de adotar um posicionamento inescrutável, voltarmos a atenção para o que, no fim, está no centro de toda a questão: a sociedade. Se por um lado a regulamentação traz benefícios óbvios e se consagra como uma questão legítima e relevante, por outro, a condução desse processo é o que será determinante para garantirmos que a aplicação de IA não represente a perpetuação de violações na vida do cidadão comum.
Fazendo uso de instrumentos como o tão aguardado 5G – que carrega a expectativa de ser utilizado nas mais diversas aplicações de Internet das Coisas, com a promessa do aumento de velocidade da internet e maior coleta de dados – a IA tem potencial para atingir patamares inimagináveis. Diante disso, é imprescindível que o Brasil esteja atento também ao arcabouço legal para o uso de informações que dão vida e fortalecem a inteligência artificial, sobretudo ao levar em consideração aspectos da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
É importante atuar com análises acuradas para que a regulamentação coexista com as legislações existentes que possam ter impactos no desenvolvimento de IA no país, sem perder de vista o cidadão. À sociedade cabe o monitoramento constante das ações governamentais para que possam se assegurar de que não exista qualquer tipo de prejuízo nas evoluções tecnológicas capazes de infringir seus direitos fundamentais.
A IA já faz parte da rotina em certo nível, mas à medida que as tecnologias vão ganhando mais força e notoriedade é fundamental se apropriar, e se sentir pertencente a esse processo revolucionário, para que a participação ativa possa acontecer de maneira eficaz. A inteligência artificial estará cada vez mais presente no cotidiano. Novas soluções serão apresentadas. Mas o debate, o acompanhamento, a manifestação social e a atenção a todas as movimentações que permeiam ações capazes de impactar a vida do cidadão devem se sobrepor a qualquer processo, porque é na atuação em conjunto com a sociedade que reside o verdadeiro progresso.
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